Ponte de Arame

#CoisasDeCalambau
por: Murilo Carneiro


Ponte de Arame Estrada Calambau - Piranga


Frequentávamos o Ginásio Leão XIII, em Piranga, dirigido pelas irmãs carmelitas. Numa quinta feira do mês de junho de 1957 lançamos o desafio de matar aula e fazer uma “viagem de bicicleta” de Piranga a Calambau. A turma era composta de 10 alunos e 17 alunas. As alunas, muitas delas internas, reprovaram com veemência a ideia. Dos dez alunos do segundo ano de Ginásio, Antonio Aparício da Silva, Antonio Francisco Mendes (o Mendes), Eliseu de Lana, Fábio de Oliveira- o Fabinho da Da. Lezir, Francisco Anselmo Silva Araújo (O Chico da Da. Leleta), Heitor Peixoto, Luiz Carlos Romualdo da Silva, Luiz Fábio Lacerda Carneiro, Lineu Idelfonso de Oliveira e Washington Luiz Noé, apenas dois, Heitor e Mendes, decidiram encarar o desafio. A eles se juntou Waldson Dias Nepomuceno- o Tita, de outra turma.

Na manhã daquele dia tomaram a estrada sinuosa e poeirenta em direção a Calambau, enfrentando curvas fechadas, subidas íngremes e descidas acentuadas, em suas bicicletas Phillips e Bristol. Um cenário típico da Zona da Mata, no interior de Minas: de um lado o Rio Piranga, caudaloso, com águas ainda claras e sem poluição e, de outro, grandes áreas verdes e pastos cobertos por muita vegetação onde se podia ver rebanhos de bovinos pastando, tudo coberto pelo azul do céu com poucas nuvens brancas. Além do gado pastando podia-se ver, também, canaviais e milharais beirando a estrada. Animais ou pequenas casas próximos a estrada eram motivo de curiosidade.Após umas duas horas, quando pedalávamos conversando animadamente, mas já um pouco cansados, chamou-nos a atenção a “ponte de arame” sobre o Rio Piranga e, imediatamente, paramos para admirá-la. Os cabos que a sustentavam estavam enferrujados e as tábuas do piso desgastadas pelo tempo. 

Era bastante estreita, cerca de um metro de largura e várias fendas apareciam em seu piso. Os escuros mourões de braúna da cabeça da ponte eram robustos e estavam em bom estado de conservação. Naquele dia ventava muito e a ponte balançava tornando difícil o equilíbrio e sua estrutura “rangia” quando começávamos a andar sobre ela. Numa rápida troca de ideias resolvemos atravessá-la de bicicleta: houve dúvida quanto ao primeiro a se arriscar. Naquele momento me lembrei do primo Murilo que costumava contar que, quando adolescente, teve grande êxito em sua primeira tentativa de atravessá-la de bicicleta (na realidade ele relatava o fato com certo orgulho...) e esta lembrança encorajou-me. 

Fiz o Nome do Pai e iniciei a travessia: o coração batia mais forte à medida que eu avançava em direção à margem oposta. Após pedalar cerca de um terço da distância total da ponte, a roda dianteira da bicicleta foi engolida por uma fenda na madeira e tomei um tremendo tombo de ponta-cabeça e, o pior, a máquina saiu do meu controle e ficou dependurada pela roda quase caindo no meio do rio. Rapidamente levantei-me e pedi ajuda aos colegas para tirarmos a bicicleta da ponte.

Porém, o medo tomou conta de todos, e se a ponte não aguentasse os três mais a bicicleta? O medo foi se transformando em pavor pois o tempo começou a mudar, o céu escureceu ameaçando chuva, o vento ficou mais forte e teríamos que nos proteger e deixar a bicicleta a deriva. Foi quando, de repente e do nada,surgiu o Zé Marinho, um simpático lavrador que residia nas redondezas e nos conhecia. Com a experiência de quem vivia ali há longo tempo, caminhou confiante e tirou a bicicleta em minutos. A essa altura bateu aquele cansaço, aquela sede e uma tremenda fome. Não havia casas, “botequins”, bares ou qualquer alternativa à beira da estrada para um descanso, sequer uma mina d’água para matar a sede e enganar a fome. A velha Garapa ainda estava longe e sua sombra generosa não estava disponível. 

De repente deu o estalo: estávamos na região da Fazenda Baía e lembrei-me que a sede da Fazenda era próxima dali. Assim, ao chegarmos numa várzea onde a pista era coberta por grossa camada de uma areia fina e branca, deixamos a estrada Piranga-Calambau e entramos numa pequena estrada secundária pedalando em direção à fazenda onde, certamente, encontraríamos água limpa para matar a sede. Imaginávamos que os proprietários, meus tios, estivessem em Calambau. Ao nos aproximarmos da fazenda avistamos o curral adjacente à sede da propriedade e nos dirigimos para a porteira de acesso quando dois pastores alemães começaram a latir e foram contidos por empregados da fazenda, que rapidamente abriram a porteira. Adentramos a área interna onde os empregados caminharam curiosos, em nossa direção. Cumprimentamos o pessoal e indagamos onde poderíamos encontrar água potável. Mal tínhamos acabado de perguntar quando uma voz grave e acolhedora se dirigiu a nós: meninos, o que fazem por aqui? Era o tio Zé Carneiro que, caminhava calmamente escada abaixo para nos encontrar e imediatamente me reconheceu visto que, além de ser um dos irmãos mais velhos da minha mãe, era frequentador assíduo da sala de espera do cartório do meu pai em Calambau. 

Estão perdidos? Acabem de entrar, chegaram em boa hora, vamos subir... Ao acabarmos de subir a escada encontramos a tia Cici, atenciosa e sorridente, que perguntou pela cunhada Nininha e pelo Zizinho e, gentilmente, nos convidou para almoçar. Uma grande mesa retangular estava servida: salada de alface e tomate, couve refogada, inhame cozido,mandioca frita, carne cozida com batatas e ora pro nobis, tutu de feijão, arroz branco e angu de fubá de moinho d’água...um cenário de dar água na boca. Lembro-me que lá estavam, também, as primas Marisa e Sonia, ainda pequeninas e uma criancinha de colo, a Elaine.

Além do primo Murilo, outras primas se encontravam estudando fora, como a Marilia e a Ilma, que estavam em Piranga. Então vocês não tiveram aula hoje? Indagou a tia Cici, um pouco desconfiada já que conhecia bem o calendário escolar. É verdade, procurei explicar: na realidade pensamos em comemorar o dia de Corpus Cristi, mas fizemos confusão, tentei justificar... E, pensamos que não haveria aula... respondi inseguro, então, resolvemos dar um passeio até Calambau mas.. . Mas, interrompeu a tia Cici,se cansaram e aqui estão para recuperar suas energias! Acabem de entrar, lavem suas mãos e sentem-se conosco, acabamos de chegar de Calambau.Sentamos juntamente com a família e desfrutamos daquele oportuno e saudável almoço. Enquanto orientava suas ajudantes a tia Cici relatou fatos interessantes relacionados às famílias Vidigal e Carneiro, falou dos filhos, indagou sobre as famílias dos meus colegas e comentou sobre os benefícios das verduras e da homeopatia. 

De repente, quando saboreávamos uma deliciosa sobremesa de doce de leite com requeijão, começou a cair uma forte chuva fora de época e começamos a ficar ansiosos pensando em nossa volta para casa. O tio percebeu e não vacilou, diante da nossa ansiedade procurou nos acalmar:- vou levá-los de volta para casa e aproveitar para fazer umas comprinhas em Piranga. Chamou um de seus empregados e mandou que colocasse as bicicletas na carroceria de um caminhão que estava estacionado em frente a fazenda e pediu que entrássemos na boleia, chamou outro ajudante que subiu na carroceria coberta com uma lona verde de encerado locomotiva e, ele mesmo, tomou o volante e começou a dirigir o veículo em direção a Piranga.

Foi um alívio para nós porque certamente não conseguiríamos pedalar de volta naquela estrada com muita lama e debaixo de chuva. Meus avós, com quem eu residia, já estavam no alpendre aguardando ansiosos por notícias nossas e ao me verem com o tio fizeram aquela expressão de alívio, mas ao mesmo tempo de reprovação. O tio desceu, cumprimentou-os e elogiou nosso comportamento: isto amenizou a situação. Ele, atenciosamente, deixou meus colegas em suas casas, foi fazer suas compras e aceitou o convite dos meus avós Dolores e Zezé Peixoto para tomar um cafezinho, quando regressava para a Fazenda. Bastante cansado, ainda consegui ouvi-lo conversando com meu avô e falando dos seus planos para a fazenda Baía e sobre uma criação de suínos.

Esta foi uma pequena aventura que ficou marcada em nossas memórias. 

Nos dias seguintes, a “aventura” foi o tema principal das conversas dos colegas de turma no Ginásio Leão XIII, pois ficamos de castigo pela falta às aulas e isto despertou a curiosidade de todos que queriam saber detalhes do acontecimento e nós três nos tornamos o foco das atenções por um bom tempo, com cada um contando a história a seu modo. Mas esta é a fiel versão da travessia da Ponte de Arame e da inesperada e agradável visita à Fazenda Baía dos saudosos tios Zé Carneiro e Cici.

Heitor.