Crônica - Um Queijinho

#CoisasDeCalambau
por: Murilo Carneiro


O dobrado é um gênero musical tipicamente brasileiro, uma marcha brasileira, herdada do passo dobrado e das marchas europeias, com características melódicas, harmônicas e formais, distintas de outros gêneros musicais. Para mim o ponto alto do dobrado é o contraponto, a dar brilho ao ritmo, ao andamento e à tonalidade, especialmente se executado por bombardino a dialogar com vários outros instrumentos.

Perceber a euforia envolvente, como quer Carlos Drummond de Andrade, na abertura da Coronation March no Le prophète de Meyerbeer; na Anchors Aweigh de Zimmerman; na The Thunderer de John Philip Sousa; na Alte Kameraden de Carl Teike; na Military March in D de Beethoven; ou na Lili Marleen de Norbert Schultze, entre outras; e nas famosas brasileiras como Batista de Melo, Dois Corações, Saudades de Minha Terra, Dobrado 207, Barão do Rio Branco, Avante Camaradas, entre miríades, é tornar-se encantado e inebriado.

Com a docilidade destes pensamentos deparei-me com uma figura exponencial em beleza singela, humildade educada, cultura intensa, sensibilidade arguta e trabalho árduo, alcançando assim admiração e respeito de todos. Quantas vezes o vi andando pela Praia absorto, vagaroso, braço direito languidamente lançado para trás, nas costas, com o antebraço entrelaçado por baixo pela mão esquerda, também languidamente lançada para trás. Sua subsistência vinha da profissão de alfaiate de mão cheia que era. Mas, o mais alto dos sentimentos mais sublimes, retratados no seu pseudo alheamento, estava nas linhas e entrelinhas das claves de Sol, Fá ou Dó. Na Música se baseava sua vida. Assim era Chico Aniceto, como carinhosamente chamado por todos.

Cientista musical, pesquisador, maestro, professor de música, Chico Aniceto era o Comandante e Regente de uma das Bandas de Música de Piranga. O seu acervo pessoal é hoje mundialmente conhecido como “Manuscrito de Piranga”, um dos mais antigos conjuntos de cópias de música até hoje encontrados no país, e o maior documento musical brasileiro em notação branca já descrito, conforme pesquisadores da USP. Contêm uma coletânea de responsórios que representam o “elo perdido” entre a música colonial brasileira do século XVII e a música portuguesa da famosa Escola de Évora, do mesmo século. No exame deste manuscrito, consta-se, além do já conhecido motetoPueri Hebraeroum (*), mais outros 16 responsórios, escritos na maneira de compor do século XVII, típica da produção religiosa contrarreformista, apresentando técnica imitativa, seções homofônicas, e o emprego da notação mensural (sem barras de compasso), conforme citação da Escola de Música da UEMG.

Contava o meu pai, amigo do Chico Aniceto, que ele foi professor de música do famoso Ari Barroso, e que eles estavam, certa vez, em Ubá, terra natal de Ari Barroso, quando a cidade festejava a estada do filho ilustre. Num teatro local, onde ocorria a festividade, também estavam presentes quando alguém, no palco, informou ao Ari da presença do Chico Aniceto. Imediatamente ele se levantou e pediu ao público que ovacionasse o seu antigo professor e fez questão de buscá-lo na plateia para com ele participar da homenagem. Um de seus filhos, Zé Aniceto, me relatou, de muito, que o seu pai adorava ouvir, de longe, o ensaio da Banda rival apreciando um novo dobrado. Então ele transcrevia a música de ouvido e a adornava com os seus dons. Na retreta do fim de semana lá estava a sua Banda a brindar a cidade com a nova música. Com respeito, e normalmente com alguma cara amarrada dos rivais, ele devolvia a partitura já devidamente ornamentada.

Sempre que podia, tratava os comandados da sua Banda à fidalga, com majestade e formalidade. O sentimento sublime aqui se junta com a singeleza, exteriorizando um dos mais belos modos de expressar que conheço. Só quem conhece sabe. Entre os seus comandados, moravam na região da Praia dois deles o Sr. Zé Lázaro, clarinetista, e o Sr. Alírio, tocador de tuba. O Sr. Zé Lázaro era proprietário da venda de secos e molhados que recebia o seu nome, e lá sempre estavam vários partícipes da região. Era um ponto de referência da cidade. Numa tardinha qualquer lá estavam várias pessoas, entre elas o Zé Bidico, o Sr. Luiz e seu irmão Antônio, o Sr. Alírio, o Dico Dolores e outros. De repente, entra na venda o Chico Aniceto. Candidamente, majestoso, cumprimenta a todos e anuncia o seu edital verbal:

- Sr. Alírio, Sr. Zé Lázaro, todos em ordem. Hoje temos toque. E olhando para a queijeira, complementa, desce um queijinho.

Fugaz e circunspeto o Sr. Zé Lázaro embrulha o queijo percebendo ser um presente compulsório.

JCBernardes 
25.01.2014